Ser ou não ser Brasileiro?

Álan Batista
5 min readApr 21, 2020

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Nesses dias, aterrissou na minha caixa de mensagens um texto, curto e provocativo, daqueles cuja força é inversamente proporcional ao tamanho. Arrisco dizer que os textos curtos na nossa era tecnológica são, talvez, feitos para serem precisos e causarem o maior efeito possível com o menor número de palavras; assim como um cirurgião resolve um problema orgânico com pequenas lâminas e grande conhecimento, espera-se que o bom desabafo seja capaz de diagnosticar problemas pelos quais muitos de nós passamos.

A obra em questão era um desabafo do ator e escritor Pedro Cardoso (na íntegra), no qual o mesmo se recusava a dividir o título de nacionalidade com quem branda uma fantasiosa bandeira nacionalista em nome de uma pátria que nunca existiu. Desnecessário dizer, creio, que ele fala de quem, tanto no sentido figurativo quanto literal, veste a camisa da forma caricata que temos observado desde o movimento do Impeachment da presidente Dilma. Não é à toa que o texto passeia pela situação pandêmica atual, mostrando o ridículo da contradição entre ser Brasileiro e ao mesmo tempo não representar em nada a sua população. A sua angústia é, sem quaisquer dúvidas, dividida por muitos dos brasileiros que acompanham o atual panorama político.

Pois bem. Não é de hoje que o nacionalismo bate na nossa porta, e nem mesmo dessa maneira específica (aliada ao autoritarismo). Na verdade, se reduzirmos todos os hectares do mundo ao tamanho de uma vila, chegamos à conclusão de que o nacionalismo é um vizinho insuportável que nunca parou de bater na porta de ninguém. Um olhar atento porém nos mostra que a sua insistência compensou e, se podemos dizer que o projeto de criar um sentimento de pertencimento e soberania é hoje empreendido pela nação mais influente do mundo, é porque o projeto de mundo anterior implodiu na sua própria contradição: os poderes econômicos perceberam ao avistar o Iceberg que não tínhamos tantos botes de resgate e simplesmente decidiram pular fora do fracasso crescente da globalização (isso, é claro, se admitirmos que eles não sabiam disso antes, o que seria até mesmo um pouco infantil de nossa parte).

Como Latour nos conta, Trump veiculou esse processo praticamente que inteiramente no discurso contra a mudança climática, pois logo viu-se que a Terra não teria recursos o suficientes para que os reis e rainhas desse jogo estratégico dividissem as recompensas das explorações econômicas. O nacionalismo entra aí não só como uma mera estratégia de manipulação ou poder, mas como constituinte e consequência do panorama atual.

Naturalmente, chega a hora de nos perguntarmos se esta é ou não a hora de sermos brasileiros: os papéis, os certificados e as identidades não dizem o suficiente. É quase que um existencialismo. Será possível criar uma nova imagem do brasileiro? Ou talvez o projeto totalitário seja justamente esse, de maneira que precisemos fragmentar o máximo possível a identidade de um país que, por si só, foi fundado na violência, na separação, no racismo e na mestiçagem aparente?

Parece que vivemos atualmente em um jogo de capoeira, onde a nossa geração, enquanto iniciante na guerra política, precisa usar com destreza a cabeça e os pés: a cabeça, porque não queremos ser acertados, e o pés, treinados na arte, para nos movermos com precisão e gingado. E nada está fácil: se de fato construir em cima de cemitério indígena dá azar, não é à toa que estamos todos pagando a nossa penitência (uns, é claro, muito mais do que outros).

Vou mais longe: alguém tem, hoje, orgulho de ser brasileiro? O que parece, no fundo, é que o projeto nacionalista quer culpar sempre o que está fora dele pelo afrouxamento dos laços familiares e pelas misérias que o próprio desenvolvimento econômico capitalístico carrega. Alguém tem mesmo orgulho de ter nascido e de ter sido criado no meio da violência, tanto física quanto simbólica, além das pessoas que nunca a viram senão reificada nos bodes expiatórios pintados propositalmente de vermelho? Estamos todos, se não totalmente, ao menos parcialmente exauridos de procurar um chão (e procurando uma ideologia, como diria Cazuza). Nossas camisas estão esgarçadas: nossas velhas roupas já não servem mais.

A nossa dúvida inicial só aumenta, e nenhuma resolução parece se desenhar para se assentar na nossa praia. Mas assentemos, nós, e escutemos: reza a história que a palavra ‘brasileiro’ está associada ao trabalho dos portugueses que extraíam o pau-brasil e levavam de volta para a Europa. A identidade do brasileiro seria aqui marcada quase que completamente pelo ofício de explorar o território brasileiro em prol de uma potência exterior. Nesse sentido, é mutuamente irônico e ridículo que Bolsonaro queira tão desesperadamente a formação de uma identidade única e nacional: ele é o mais Brasileiro de todos, e a maior prova de amor e lealdade ao seu título que ele pode nos fornecer é a completa e absoluta submissão ao presidente Trump.

Operários, 1933. A obra de Tarsila do Amaral retrata a industrialização brasileira.

Nada aponta no entanto que o resgate à identidade seja dispensável, e é justamente nesse gelo fino que patinamos atualmente. Se admitimos, como fazem alguns gurus, que toda nacionalidade é um tipo de violência, certamente tentaremos patinar na água. Pelo contrário: vemos os mais lindos trabalhos e tentativas de empodimento* em todos os cantos do Brasil, sempre procurando dar voz aos excluídos (mesmo que as suas vozes em algum momento se contrastem com a nossa, porque é inconcebível achar que o privilégio tem todas as soluções). Não só isso, mas cada vez o escárnio contra esse movimento cai em desuso nas universidades, de forma que o compromisso social e o diálogo com as comunidades caminham progressivamente enquanto diretrizes das novas educações.

Pedro Cardoso entendeu a essência disso muito bem quando disse que o Brasil que ele sonha não era só dele, mas de todos os seus irmãos que contribuíram imensamente para o cenário nacional. Pessoalmente, e acho que muitos concordam comigo nesse aspecto, penso que esse é o Brasil índio, Brasil negro, o Brasil mulher. Esse Brasil vale a pena ser, e não ‘só’ por um sentimento de justiça, mas também porque o projeto atual é completamente impossível. É quase tão absurdo, ou mais, quanto um trem desgovernado em um trilho de plástico.

E isso tudo afinal, caso quisermos, nos remonta à pergunta mais essencial: como fazer frente a um governo que faz absolutamente tudo para ridicularizar a democracia? Seria realmente uma luta de Davi contra Golias? Nesses pequenos Brasis existe uma potência incalculável, e todos aqueles que os opõem sabem muito bem disso: se existe uma regra de ouro do bom competidor capitalista, é de não só fazer o seu melhor trabalho, mas de junto eliminar a concorrência. Um mercado pequeno, é claro, não pode nunca ser livre, mas a mão é invisível porque o tapa sempre vem sem que possamos nos antecipar. Talvez seja finalmente o momento de nos tornarmos parte desses pequenos Brasis e darmos um impulso nessa mariposa. Não para nos tornarmos imunes ao resto do mundo, como pede o projeto nacionalista; mas que tenhamos a potência de vida necessária para criarmos o nosso próprio. Como publicou Oswald de Andrade, já em 1928: tupi, or not tupi?

*Empoderamento, na linguagem do educador e antropólogo Tião Rocha.

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Álan Batista

Psicólogo e meio artista. Gosta de interagir com outras pessoas, tecnologia e jogos de tabuleiro.