O que um ato de vandalismo numa galeria de arte pode nos ensinar sobre o comportamento humano?

Álan Batista
8 min readApr 10, 2021

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Minwoo Park/Reuters
Minwoo Park/Reuters

Quase certamente, você já teve algum tipo de pensamento automático bizarro ou não convencional relacionado aos objetos que te cercam. Em um segundo você está pensando sobre a sua deadline de sábado, sobre a nova campanha de marketing ou sobre o sentido da vida, quando um objeto absorve a sua atenção de uma maneira completamente inesperada para você. Você vê uma lata de lixo e tem vontade de jogar uma bolinha de papel como se fosse o próprio LeBron James, passa numa sessão de supermermecado e dá um tapão no saco de arroz. Ou você vê um boeiro aberto no chão e pensa que caberia ali facilmente. Um pedaço de fandangos, é claro, poderia se sustentar no seu nariz. Um carrinho de criança passa do seu lado, daqueles que tem em algumas shoppings, e você se pergunta se as suas pernas já são grandes demais pra caber ali. Eu já ouvi até mesmo coisa muito mais louca; tenho um amigo que viu um triturador de lixo uma vez e pensou inocentemente: “Acho que eu conseguiria enfiar o meu braço inteiro ali”. A não ser que estejamos em busca de clicks e comédia na internet (ou de tragédias, no último caso), é claro que a maioria de nós tem autocontrole o suficiente para rejeitar esse pensamento e simplesmente seguir com as nossas vidas, com a consciência tranquila de que não é só porque algo pode ser feito que deve ser feito. Querer às vezes é poder, mas poder quase nunca é querer.

Há vezes, no entanto, que esses pensamentos automáticos são inteiramente justificados —e às vezes nem os percebemos como pensamentos. A maioria das atividades do dia-a-dia, por exemplo, nem mesmo precisam ser pensadas: podemos pensar sobre a nossa vida profissional ou o estado da pandemia enquanto fazemos uma atividade completamente não-relacionada, como por exemplo varrer o chão da sala. É o que a maioria de nós faz, na verdade, quando lava a louça ou espera a água esquentar. Não é mesmo?

Hoje eu gostaria de trazer uma reflexão sobre um recente ato de vandalismo involuntário que ocorreu numa galeria em Seoul, na Coréia do Sul. Um casal não-identificado pintou, inocentemente, em cima de uma obra avaliada em cerca de $440,000 dólares. Para quem não quer fazer o cálculo, na cotação atual, isso dá mais de 2,5 milhões de reais. Qualquer um que fizesse isso por vontade própria na frente de uma câmera está ou subordinado à loucura, ou muito inclinado à violência. Mas ao serem levados para a delegacia, uma investigação demonstrou que o dano na obra por parte dos dois foi inteiramente involuntário. O motivo? Para o casal, a obra era uma obra participativa — sobretudo porque embaixo dela haviam pincéis e latas de tinta espalhados no chão do museu. Afinal, convenhamos: no mundo contemporâneo da arte, não é difícil imaginar uma obra colaborativa em progresso dentro de um museu — mesmo para mim, que não tenho sido um frequentador assíduo de museus nos últimos tempos, consigo pensar em algumas obras interativas que visitei.

É claro que isso suscitou um debate enorme. Segundo a reportagem do New York Times, parte do público defende que a obra não deva ser restaurada porque suscita uma reflexão acerca do que é a própria arte nos dias de hoje. Outras pessoas, como o artista evidentemente, vêem essa posição como um absurdo: JonOne, um dos mais influentes artistas urbanos nos dias de hoje, declarou estar extremamente chateado com a situação e sentir que a sua arte foi desvalorizada. Mas eu acredito que, além da discussão ética e estética das duas posições, existe uma lição muito importante a ser tirada.

Essas três manchas escuras no círculo em vermelho foram feitas pelo casal. Fonte: Organizers of the “Street Noise” exhibition

Me acompanhem por um segundo no meu pensamento. Quem está familiarizado com o design de produtos e com a relação das ciências cognitivas com a indústria provavelmente já conhece Donald Norman, que popularizou o termo UX (experiência do usuário), professor que lecionou em Harvard, é emérito na Universidade de San Diego e também leciona na Universidade de Stanford. Norman, que tem extensa experiência na indústria quando o assunto diz respeito a como os usuários utilizam tecnologias, ficou ainda mais conhecido pelas suas chamadas Norman Doors.

Retirado de UX Collective (Intro to UX: the Norman door. Introductions to user experience design… | by Jesse Russell Morgan | UX Collective (uxdesign.cc))

A foto acima é um exemplo de uma Norman Door. Essas portas são símbolos utilizados no mundo do Design para falar sobre portas que são extremamente mal-desenhadas, por não darem uma orientação de como a pessoa que as utiliza deve proceder. Essa inclusive é uma situação que praticamente todo mundo já passou: você vê uma linda barra polida grudada na porta e a puxa, só para descobrir que na verdade a porta é de empurrar. A breve humilhação faz você pensar que o problema é seu, que você é incapaz e que provavelmente você não é muito bom com portas. Mas de verdade, o que poderia ser esperado? O design da porta praticamente te convida a que ela seja puxada. Não precisa se sentir mal! A culpa é da porta. Ser burro que nem uma porta finalmente faz sentido: a maioria delas é mesmo.

Pedindo perdão pela generalização, a provável verdade é que nós, humanos, interagimos com o ambiente de uma maneira um tanto pragmática. Muitas coisas só fazem sentido a partir das possibilidades pelas quais podemos interagir com elas. Em outras palavras: algo que pode ser puxado dá vontade de ser puxado. Isso provavelmente seria uma elastização ingrata do conceito, mas talvez seja por isso mesmo que tenhamos que avisar nas caixas de brinquedos infantis quando os mesmos contém partes que podem ser engolidas. Se não sabemos como funciona algo, só podemos explorá-lo a partir da coisa que conhecemos melhor: o nosso próprio corpo!

Norman chamou esses fenômenos de affordances, mas o que poucos sabem é que quem deixou esse termo realmente famoso no mundo da Psicologia foi James J. Gibson, psicólogo americano, no seu livro de 1979: The Ecological Approach to Visual Perception. Enquanto Norman se apropriou do conceito para o entendimento do contexto entre um humano e uma máquina, Gibson trata dele para fazer algo mais profundo sobre a própria percepção humana. Segundo o mesmo, uma affordance, se podemos tratá-la individualmente, é o que o ambiente oferece ao animal (pois surpresa! Também somos animais). Nossos atos são muitas vezes determinados por affordances.

Novamente do UX Collective.

É claro que essas coisas não são naturais de todos os seres humanos universalmente. Em certas culturas, certos sinais podem significar coisas diferentes do que significam para nós. Se não aprendêssemos como navegar no mundo tecnológico de hoje em dia, dificilmente acharíamos que um quadrado dentro de uma tela reta deva ser apertado, mesmo que ele simule a topografia de um botão. Pense em todos os filmes em que os humanos de agora viajam para o futuro ou conhecem uma tecnologia alienígena: nada mais nos parece óbvio!

Tudo isso para dizer:

Acredito que é extremamente fácil compreender a atitude do casal. Talvez muitos de nós teríamos feito a mesma coisa. Para alguém que pinta e tem o costume de usar o pincel e o balde, essa vontade deve ser ainda mais óbvia. Tinha um aviso dizendo que a obra não deveria ser tocada, mas sinceramente: o que deve ter chamado mais atenção, os baldes e pincéis no chão debaixo de uma pintura abstrata ou um sinal provavelmente monocromático com um aviso? Quando você está num museu, provavelmente você está extremamente focado nas obras que estão ali presentes — sobretudo se pensamos que a maioria de nós, em situação de pandemia, não vê a hora de fazer algo diferente de ler, assistir séries e tentar receitas dentro de casa (como não sou todo mundo, só posso dizer da minha própria experiência). Experiência, aliás, é uma coisa engraçada: estamos de certa forma o tempo todo brincando e experimentando com o mundo, explorando novas possibilidades e conhecendo novas formas de ser.

Essa intuição nos é um tanto evidente, já que se debate ainda por cima se o casal deve ou não ser responsabilizado pela restauração da obra (que seria de cerca de 9 mil dólares, valor ínfimo comparado ao da obra).

Talvez seja por isso mesmo que tenhamos esses pensamentos estranhos. Um buraco geralmente é usado para pôr coisas. Um botão, para ser apertado. Uma cor chamativa, para ser olhada. Uma maçaneta para ser alavancada. Todas essas coisas nos enviam sinais o tempo todo, e os interpretamos durante vinte quatro horas por dia tanto conscientemente quanto inconscientemente. Talvez seja até mesmo por economia: se, quando acordados, trabalhamos sem descanso na compreensão dos sinais que nos cercam, é facilmente compreensível que economizemos recursos e simplesmente realizamos a mesma ação do mesmo modo toda vez. Imaginem o trabalho de parar na frente de uma porta toda santa vez que se encontra uma, se perguntando a partir de cada detalhe em volta se ela deve ser aberta ou não. Agora imagine ter que fazer isso com absolutamente todas as coisas à nossa volta, inclusive as de lazer.

Se devemos perdoar o casal? Não faço ideia. Culpar o artista? Também não posso dizer o mesmo. Pessoalmente, acho extremamente curioso que um artista que provavelmente começou pintando nas ruas pense que a arte deve ser feita apenas para o olhar. Ou talvez seja por isso mesmo que ele o pense, não sei e seria extremamente complicado da minha parte generalizar esse tipo de coisa. Já fiz algumas entrevistas e um trabalho sobre artistas de rua no Rio de Janeiro, e posso dizer que pintar em cima de uma outra arte às vezes é observado como sinal de desrespeito. Mas se você pergunta para uma pessoa aleatória na rua à que serve um balde de tinta, muito provavelmente te responderiam sem nem mesmo compreender a complexidade da resposta: pra pintar, é claro!

É claro que a nossa cognição e a nossa percepção são contextuais, e talvez o simples fato da obra estar no museu já é um grande indício de que ela não deve ser tocada. Mas os museus são cada vez mais interativos, o que sem dúvida nos confunde com o que deve ser feito num museu. Do lado oposto, por exemplo, temos a velha notícia das pessoas que confundiram os calçados no chão com uma obra de arte, ou até mesmo fizeram a mesma coisa com um óculos.

De qualquer forma, podemos pelo menos tirar uma lição valiosa desse experimento social não-intencional. O jeito que as coisas aparecem para nós geralmente delimita o jeito que utilizaremos elas. Afinal, quem nunca viu uma fruta de plástico em uma bela e decorada fruteira, tão bonita que por um segundo você tem o louco pensamento de que poderia até mesmo comê-la?

Somos estranhos, é claro. Mas acredito que, às vezes, ao menos somos compreensíveis.

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Álan Batista

Psicólogo e meio artista. Gosta de interagir com outras pessoas, tecnologia e jogos de tabuleiro.